Brasil sairia ganhando se pudesse importar as carcaças de carros antigos que sobram nos vizinhos Uruguai e Argentina

Texto: Manoel G. M. Bandeira
Fotos: Divulgação

Mercosul

Vivemos em uma grande aldeia global. Porém, o jogo de interesses muitas vezes cria fronteiras que não deveriam existir. É claro que cada país tem suas leis, sua cultura, suas peculiaridades. Mas, quando se fala em preservação de patrimônio histórico e cultural, imagino que cada ser humano é  responsável, independentemente das fronteiras definidas nos mapas. Cada país escreve a sua história.

No Brasil, a preocupação com a preservação do patrimônio histórico, no que diz respeito a automóveis, caminhões e máquinas em geral, ficou restrita à iniciativa de alguns poucos colecionadores, que conseguiram resgatar uma pequena parte da memória mecânica do nosso país, que hoje é mantida em coleções particulares ou em museus sem praticamente nenhum incentivo por parte de qualquer governo.

O Brasil sempre teve uma indústria siderúrgica muito forte. Atender à necessidade sempre crescente dos fornos das siderúrgicas com minério de ferro retirado da natureza seria muito dispendioso. Mais barato foi reciclar todo tipo de metais em larga escala. Em teoria, a reciclagem é benéfica e necessária, mas criou-se aí um grande paradoxo. No caso da reciclagem de metais no Brasil, o que aconteceu foi que, nas décadas de 1960, 1970 e 1980, derretemos uma grande parte de nossa história automobilística. Se você está agora em um prédio construído na segunda metade do século passado, é muito provável que, dentro das paredes, no meio do concreto, o ferro que sustenta sua estrutura tenha vindo de Cadillacs, Oldsmobiles, Buicks, Chevrolets e Fords, entre outros.

Dizimamos nossa frota. Comecei a me interessar por carros antigos no final dos anos 1970, quando era comum encontrar exemplares em uso ou mesmo abandonados nas ruas ou em terrenos baldios. À época visitei muitos desmanches, andei em cima de Cadillacs, Chevrolets, Fords, todos empilhados e aguardando sua hora chegar. Vi muitos carros sendo literalmente desmanchados a machadadas. Isso mesmo, os carros eram picados com machado de cortar lenha e seguiam aos pedaços para as siderúrgicas.

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Cenário diferente

Enquanto isso, pouco além das fronteiras, Argentina e Uruguai, nossos “hermanos” latino-americanos simplesmente não tinham o que fazer com seus carros “velhos”. Mesmo que um carro tenha sido abandonado e totalmente desmanchado por lá há muitos anos, é provável que até hoje sua carcaça permaneça abandonada em algum matagal. Eles não tinham siderurgia, não derretiam seus carros. Outros fatores contribuíram para que a conservação do patrimônio sobre rodas sobrevivesse melhor nos países vizinhos.

Particularmente na Argentina e no Uruguai, o relevo e o clima favorecem a conservação. Com relevo de planície e clima seco, o desgaste para os carros é bem menor. Tanto a região de Buenos Aires, na Argentina, como todo o Uruguai, estão posicionados sobre uma imensa laje de pedra. Devido ao piso mais firme, a conservação das ruas e estradas é bem maior por lá. Isso significa menos buracos, menos umidade e, consequentemente, menos esforço, menos trincas e rachaduras nas carrocerias e chassis dos carros e menos ferrugem.

Além, é claro, de melhor conservação do conjunto mecânico em geral devido ao menor esforço despendido ao trafegar. Há alguns anos a frota de veículos antigos do Uruguai vem sendo adquirida por estrangeiros, principalmente europeus, que evidentemente escolheram a dedo suas aquisições, comprando toda e qualquer raridade mecânica disponível. Restaram, então, os ditos carros populares, como Fords e Chevrolets, e ainda assim na grande maioria em seus modelos de menor valor, os sedãs. Porém, para nós, rodders, esses carros são a matéria-prima básica perfeita para a construção de nossas obras de arte sobre rodas, os hot rods.

Potencial desperdiçado

No Brasil o movimento Hot Rod está apenas engatinhando, se nos compararmos a países como a Austrália, por exemplo. Porém temos enorme potencial para sermos a terceira ou quem sabe até a segunda maior potência mundial em hot rods. O brasileiro adora carros e é muito criativo, ingredientes essenciais ao crescimento do movimento cultural conhecido como Hot Rod. O que nos falta é uma legislação que nos permita emplacar e rodar com nossos carros e também a matéria-prima básica, ou seja, o que sobra no Uruguai e na Argentina, carrocerias de carros antigos. Na Argentina e no Uruguai ainda existe uma oferta muito grande de carros antigos com preços aceitáveis.

Hoje as distâncias não são mais problema, pois as estradas atendem à demanda. Por que não liberar, então, a entrada de carros antigos vindos desses países para o Brasil? Imagine você que um sujeito compre um Ford 1938 na Argentina, que ele apresente a documentação da compra na fronteira e que receba uma autorização para entrar com o carro no Brasil. De posse dessa documentação ele dá entrada nos órgãos competentes e, pagando evidentemente os impostos, consegue documentar seu carro antigo. Este carro vai para a oficina onde será total ou parcialmente desmontado, repintado, a parte mecânica será trocada, receberá pneus novos e rodas novas.

Depois ele segue para o estofador ou tapeceiro, onde toda a tapeçaria será refeita, e continua, eletricista, mecânico de freios, polidor etc. etc. etc. Passando por todas estas etapas, o carro está gerando empregos, capacitando mão-de-obra, pagando impostos. No final temos uma bela obra de arte, que estará frequentando encontros por todo país, um carro que arranca sorrisos por onde passa e que alegra as ruas, avenidas e praças de nossas cidades, um carro sem igual, uma verdadeira obra de arte sobre rodas. O que o Brasil ganha proibindo a importação ou a simples entrada de carros antigos com mais de 50 anos de fabricação?

Absolutamente nada. O Brasil, nosso querido Brasil, perde somente, perde a oportunidade de aumentar sua riqueza cultural e seu patrimônio histórico, perde a oportunidade de se destacar internacionalmente, perde a oportunidade de gerar novos empregos e de capacitar mão-de-obra. Vivemos em um país sedento de crescimento, com um potencial criativo incrível, porém ainda nos falta bom senso em muitos setores. Esperamos que a classe política brasileira seja alertada sobre esta enorme oportunidade que o Brasil está perdendo, deixando que outros países adquiram carros antigos nos países que são nossos vizinhos, enquanto que nós, devido a uma burocracia insensata, assistimos a tudo sem poder fazer nada a não ser enxugar as nossas lágrimas.

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