O Ford “Shoebox Lead Sled kustom” 1951 feito para honrar os 5.000 anos de Kustom Kulture e a febre egípcia da década de 50[1]
Texto: Victor Rodder
Fotos: Mel Gabardo
Ford Business Coupé 1951
Há cerca de dois anos, decidi que era hora de me despedir de um velho companheiro, um Ford 1951 Cupê Business. Mas decidi também que, antes de fazer isso, eu iria refazer tudo que me incomodava naquele carro. Assim, desmontei e me preparei para refazer chassi, suspensão, carroceria, mecânica, pintura, interior… E como o carro ganharia tudo novo, era hora de usar meus conhecimentos acumulados sobre customização e criar algo único para aquela “caixa de sapatos”. Afinal, customização é, em essência, melhorar um carro, transformá-lo em algo absolutamente singular e, ao mesmo tempo, respeitar alguns conceitos.
Fazer isso com um Ford 1951 não era exatamente tarefa das mais fácies, já que, ao lado dos Mercury 49/51, os Ford desse mesmo período são, sem dúvida, os carros mais customizados da década de 50.
Os trabalhos que deveriam ser feitos no carro já estavam a pleno vapor, mas ainda faltava dar uma personalidade ao projeto! O carro ressurgiria novo, renasceria… Merecia uma nova cara! Já existiam muitas modificações na carroceria, chassi, motor e conjunto ótico – coisas que fui fazendo ao longo do tempo em que fiquei com o carro – e tudo estava sendo melhorado, mas ainda faltava dar uma identidade ao projeto. E, para piorar, era hora de escolher a cor!
Cores para kustoms são sempre um dilema para mim… Você tem toda a paleta do universo, mas a cor tem de ser a correta para o carro. Nem mais, nem menos. E para o Pharaoh, a resposta surgiu num dia ensolarado, quando eu estava andando pelo parque: vi um escaravelho verde, com uma carapaça multicolorida reluzindo sob o sol… E assim que ele entrou embaixo de uma folha, a sombra fez com que houvesse uma ausência de cor! Era essa a escolha a fazer! Aí, pesquisando mais sobre os escaravelhos, caiu a ficha: o tema do carro seria a antiga cultura egípcia. Os escaravelhos eram um símbolo real, e esse Ford sem dúvida estaria na realeza do mundo kustom! George Barris – sempre uma inspiração e alguém que eu admiro muito – já tinha feito uma obra-prima que se referia a este mesmo país oriental[2].. E agora, sem querer me comparar, era minha vez de tentar. Um latino, sul-americano, que rala muito para achar peças e mão de obra qualificada, que iria construir[3] (e antes que alguém me xingue, leia as notas no final do texto) um carro customizado!
E a ideia me pareceu sensacional! Quem viveu os anos 50 pode confirmar: naquela época, músicos, estilistas, designers e, claro, os construtores de automóveis, se inspiravam em diferentes temas e culturas para seus projetos: foguetes, aliens, velho-oeste, mexicanos, havaianos, polinésios… Cenas de todo o mundo, e além. E um desses temas que estava por lá, mas não era assim tão comum, foi a cultura egípcia.
A década de 1950 foi o centro de um grande “revival” do interesse pelo Egito antigo. Isso graças a uma tendência surgida nos filmes épicos do cinema. “Princesa do Nilo” (1954), “O Egípcio” (1954), “Terra dos Faraós” (1955), “Os Dez Mandamentos” (1956), e muitos outros, foram filmes que lotaram salas de projeção lá nos EUA e ao redor do mundo. Os maníacos por cinema vão falar que me esqueci de Elizabeth Taylor em “A Filha de Cleópatra”, de 1960, ou “Cleópatra”, de 1963, mas quero ficar só na década de 50 mesmo, quando a “Egitomania” estava no auge, inspirando Hollywood e as férias dos ricaços do mundo ocidental. Sim, pois eles viam os filmes nos cinemas, e já saíam de lá fazendo reservas no próximo voo da Pan Am ou TWA.
Além disso, os egípcios da Antiguidade eram precursores da Kultura Kustom: tatuagens e pinstripes já estavam por lá há mais de 5.000 anos!
Aí, tudo pareceu fluir melhor! Com um objetivo em mente e as cores escolhidas, o primeiro passo foi achar a tal da cor. Como Mr. Ford, eu gosto de preto, mas queria verde. Aí, a opção foi uma pintura tri-coat[4]. Fui então até uma loja de tintas automotivas local, sentei com o “engenheiro chefe” e depois de alguns testes e muita alquimia, estava com a pele do 51 “ready to go”.
Pintado, montado e com o motor em ordem, enquanto alguns pequenos ajustes eram feitos, fui em busca do estofamento. Queria algo tão especial dentro quanto fora. E, assim, rabisquei com lápis de cor numa sulfite A4 as formas, desenhos e padrões dos bancos. Linhas retas se referiam às pirâmides, bem como ao símbolo mágico daqueles que adoram potência: o “V8“.
Como a carroceria tinha sido bem modificada, com o teto rebaixado e o assoalho encaixando no chassi, o espaço interno tinha diminuído consideravelmente. Por isso, os assentos precisavam ser totalmente reestruturados, tornando-os mais estreitos e mais baixos em comparação aos originais. Tudo planejado, era hora de encontrar o material.
É impressionante a falta de opções que temos no mercado nacional, e mesmo sendo Curitiba umas das grandes capitais do país, tive de rodar muito para encontrar aquilo que precisava. O couro dos bancos tingido. Os cintos, feitos sob encomenda, e o carpê, um Bouclê “verde esmeralda” 10mm, foi encontrado depois de muito garimpo, no estoque de uma grande revenda em Curitiba, que tinha comprado umas peças de uma empresa que falira anos atrás. E esse carpete tinha pelo menos 40 anos, já que uma etiqueta em seu verso marcava o fabricante e o ano de 1976.
Com tudo na mão, levei o carro para a oficina do “Polaco Estofador” e o resultado foi excepcional.
A esta altura, o “selo real egípcio” que eu havia encomendado já estava em minhas mãos, e numa cerimônia quase que religiosa, os emblemas do carro deram lugar a um dos amuletos mais importantes e poderosos do antigo Egito, representando força, vigor, saúde, segurança, renascimento e vida eterna! Esse Ford já tinha praticamente ressurgido das cinzas mais de uma vez, e nada poderia ter sido mais apropriado ao carro que a história do antigo Egito.
Por fim, mas não menos importante, Marcio “Believe Kustom Works” fez os pinstripes. Pintou os olhos do “monarca das ruas”, deu-lhe um rosto com seus pincéis e, como os tesouros do Faraó Tutancâmon, que estavam escondidos dentro da pirâmide, transcreveu os “hieróglifos” que contam a lenda deste “rei de quatro rodas” nas laterais das portas e sob o capô, deixando-os à vista apenas dos escolhidos.
Conversamos muito, eu e o Márcio, enquanto o trabalho de pinstripes era feito, e o resultado disso foi o toque final, inserido no pedal de freio, quando uma referência explícita à Von Dutch o “olho voador de Horus“, concluía mais uma verdadeira obra de arte sobre rodas. Mestres e deuses estavam orgulhosos. O Lead Sled em honra aos 5.000 anos de Kustom Kulture e a mania egípcia de meados do século passado estava pronto para as Ruas[5].
FICHA TÉCNICA:
Proprietário: Cássio Noronha
Cidade: Belo Horizonte (MG)
Construtor/designer: Victor Rodder
Ano: 1951
Marca: Ford
Modelo: Business Coupé
Modificações:
Teto rebaixado 6 polegadas
Assoalho encaixado sobre chassis em 6,5 polegadas
Grade personalizada com dentes do Chevy 1954
Shaved, Nosed, Decked
Faróis embutidos (frenched)
Moldura da lanterna traseira personalizada e alisada
Lanternas traseiras com Blue Dots
Frisos laterais da lanterna traseira alongados e moldados à carroceria
Saia lateral personalizada
Para-choques alisados
Escapamentos embutidos
Carroceria e chassis reforçados (Bonora Rancing)
Acabamentos de frisos internos e externos de para-brisas, parafuso em forma de pirâmide sobre filtro de ar: AC3 Cars.
Cor: CUSTOM MADE – tri-coat special “Green Khepri Intense”
Pintor: Bonora Racing
Pinstripes e gráficos: Believe Kustom Works
Motor: Ford 302 com cabeçote rebaixado e pistões especiais
Transmissão automática C4 ”Three-on-tree”
Ignição eletrônica
Direção hidráulica Fomoco
Sistema duplo de Flamethrowers
Chassis, suspensão e freios a disco dianteiros: Chevrolet S-10 1998
Coluna de direção Ford Galaxie 1963
Volante personalizado sobre Ford Swing-Away 1963
Rodas de Ferro 15”
Pneus radiais com faixas 285/65/15
Calotas: Smoothie (Full Moon)
Interior: Carpete Bouclê “verde esmeralda” 10 mm e bancos em couro (execução “Polaco Estofador”)
Cintos de segurança de avião verde esmeralda com fivelas cromadas
Emblemas laterais “Royal egyptian seal” esculpidos a mão por Wigney Oliveira
FOTOGRAFIA:
Fotos e Direção: Mel Gabardo
Modelo: Erica Torquatto
Maquiagem: Raphaela Haach
Cabelo: Polliana Abade
Tratamento de Imagem: Jessica Prado Schianti
Locação: Ordem Rosa Cruz – Museu Egípcio – Curitiba/PR
Produção de moda e acessórios: Estúdio Mel Gabardo
Vestido: Tati Chiletto
[1] Texto originalmente publicado na edição 79 da revista norte-americana Car Kulture Deluxe.
[2] Em 1955 George Barrios customizou um Lincoln 1953 e o batizou de Golden Sahara.
[3] Eu não sou um legítimo construtor de carros, daqueles que mete a mão na massa. No máximo ajudo… Sei contratar, sei pedir, sei gerenciar e terceirizar e dizer no final se está bom ou não, mas pela falta de outro título, construtor está servindo… mas a verdade é que se não fosse pela ajuda de muita gente altamente qualificada, o carro não teria a qualidade que tem! Obrigado!
[4] A pintura tri-coat, em resumo, é aquela feita com três camadas: uma base, uma cobertura perolada e um verniz tonalizador. No caso do Pharaoh, um base poliéster preta, uma camada de resina com pigmentos metálicos e algumas camadas de verniz PU verde.
[5] Em sua primeira exposição, no Sul Brasileiro de Veículos Antigos, o Pharaoh ganhou prêmio de melhor Custom, e na sequência foi capa de uma das mais respeitadas e tradicionais revistas de Cultura Custom dos EUA, a Car Kulture Deluxe. Hoje o carro está em Minas Gerais, aos cuidados de um rodder apaixonado!
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